Ensaio - Ronald Augusto

Metalanguage #2 - Rosario Giacomazza
Alexandre Brito alheio ao próprio sentido e às portas do Metalíngua

Num poema intitulado “Nova poética” (1949), Manuel Bandeira lançou a teoria do poeta sórdido: “aquele em cuja poesia há a marca suja da vida”. Augusto de Campos, por sua vez, publica em 1953 o Poetamenos, volume-vírus de distúrbio afásico inoculado na corrente sangüínea da linguagem poética do período, caracterizada por certa opulência discursiva e um preciosismo lexical. Herança duvidosa dos poetas filosofantes de 45. De outra parte, alguns princípios estéticos do alto modernismo caíam em descrédito ou se diluíam em lirismo de compadrio.

Assim, como prólogo à poesia do grupo noigandres, o livro de Augusto de Campos, o vietcong concreto por excelência, carrega em seu bojo uma estética da recusa e a visão de que a poesia deveria se constituir em “essências e medulas”. O poetamenos ministraria o mínimo indispensável de “poeticamente correto” exigido pelo repertório do leitor. Na verdade, o poetamenos convida o leitor ao exercício da co-autoria de um texto lacunar.

Muito bem. Agora chegou a minha vez de levantar uma teoria: a do poetamais. Alexandre Brito é convocado a vestir a camisa, e a jogar um jogo cujas regras não são pétreas. O poetamais que identifico em Alexandre Brito começa a aparecer já em alguns poemas do seu O fundo do ar e outros poemas (ed. Ameopoema, 2004), mas ganha em radicalidade nos poemas mais recentes, ainda inéditos, que tive a oportunidade de ler. Poemas perturbados por uma discursividade desviante e desafiadora. A poesia+ de Alexandre Brito não investe, portanto, numa “retomada” do texto discursivo, como tentativa de solucionar a nostalgia do conteúdo. Não canta o retorno a uma “poesia que tem algo a dizer”; não. Sua experiência com a dicção discursiva se dá pelo lado da metalinguagem e de uma certa fantasia escritural centrífuga, com ressonâncias do hipertexto do “overmundo” virtual. Brito afivela o discursivo como máscara, isto é, fala “através de”. Manipula os dados do seu texto paralelamente à tradição do poema longo. Estabelece contrastes, pontos de apoio e de fuga. Olha os limites e as chances dessa algaravia com olhos livres, ou desde um ponto de vista que simpatiza com os significados esquivos sugeridos pelo jogo de equivocábulos.

À diferença do texto da opulência verbal, rio na cheia, que caminharia num crescendo até o desaguadouro da “emoção” do leitor, o poetamais Alexandre Brito, propõe um tom discursivo não-cumulativo, não-sequencial. Por sua qualidade mais sincrônica do que diacrônica, no que respeita ao arranjo do vocabulário e da sintaxe, estes poemas desmesurados são menos verberações do que transverberações. Brito rasga transversalmente e ironicamente o tecido do poema verboso, consagrado assim pelo uso ou pelo cansaço.

Graças à mobilidade fugidia dos seus signos, esta transverberação do poetamais, salta da folha branca e incorpora o gosto e o gozo da fala quase-canto, e estabelece uma forma de linguagem onde os sentidos afloram de chofre, para, logo a seguir, serem revogados sem angústia, talvez, por amor à música, ou ao silêncio: facetas de uma mesma fatura criativa.

A festa vertiginosa de som e sentido que Alexandre Brito, como poetamais, nos oferece, vai ao encontro da teoria do poeta sórdido, de Manuel Bandeira. Mas o que surtirá dessa convergência? Parafraseando o poeta pernambucano: poetamais é aquele em cuja poesia há a rasura suja (luxo/lixo?) da linguagem que se define a partir da dissipação dos seus próprios signos. Arte que “existe pra nada”, como nos propõe Alexandre Brito com desassombro em um dos seus poemas.